sexta-feira, 24 de junho de 2011

Memórias do cárcere (13) o assassinato


Márcia lá ia todos os dias para o Hotel Polana, bem arreada com vestidos ousados, belas jóias que eu, tolo, lhe tinha comprado, e quando se despedia de manhã, piscava-me o olho! Era desesperante e eu já não sabia se era de troça, de cumplicidade ou de provocação.

Cada vez estava mais apaixonado e desejava-a quando a via sair de saias travadas salientando um rabinho bem feito e mostrando, generosa, uns alvos peitos que se viam, indecentemente e sem soutien, até aos bicos.

Não tinha coragem de a ir visitar, pois era dar parte de fraco, mostrar ter ciúmes, desconfiar! Mas ficava enraivecido em casa, a pensar que outros homens a miravam com apreço dos pés à cabeça, se aproximavam só para a cortejar e quem sabe, fazendo-lhe propostas tentadoras.

Decidi comprar-lhe um carro pequeno que não desse nas vistas: o pretexto seria não gastar mais dinheiro do muito que já tinha dispendido nos últimos tempos com roupas, jóias, perfumes, cabeleireiros, produtos de beleza, um pesadelo!

Já toda Lourenço Marques falava de a ver passar pelas ruas da cidade no Maserati a alta velocidade, de cabelos ao vento e já se murmurava que nem sempre o fazia sozinha, pois os meus amigos já a tinham visto com outros acompanhantes masculinos lá para o pé das dunas!

Falei-lhe sobre isso e ela riu com aquela boca sensual tão gostosa, pondo a cabeça para trás provocante, com o corpo na minha direcção e agarrando-me insinuante:

- O meu amor está com ciúmes! Que bom, é a prova que me adoras. Mas são Clientes estrangeiros e esporádicos do Hotel que me pedem para lhes mostrar a praia e eu vou. Tens que confiar, meu bebé – e conquistava-me de imediato e fazíamos amor como se ela só pensasse em mim.

Voltei ao meu Maserati e passava o tempo a beber em bares pela cidade. Era visto a meio da tarde a sair meio cambaleante e a voltar a casa, perigosamente aos zigue-zague, de tal maneira que a Polícia falou para o meu pai, avisando-o que se assim continuasse, iria ter sarilhos.

Os meus amigos íntimos constituíram uma embaixada e vieram visitar-me a casa dizendo que precisavam de falar comigo sobre um assunto sério. Temia que fosse sobre a Márcia, e assim foi.

Entretanto passaram-se meses e ela cada vez chegava mais tarde, rejeitava-me na cama e com sobranceria exigia-me mais dinheiro. Passei a odiá-la e a amá-la ao mesmo tempo!

A delegação vinha falar-me para que eu tomasse uma atitude, pois Márcia era vista com muitos homens e sabia-se que os frequentava, não sendo já só estrangeiros mas até alguns dos meus inimigos locais que se riam nas minhas costas. Propunham a habitual solução: que a largasse de vez e que a deixasse fazer a vida que ela quisesse.

Agradeci-lhes a franqueza e tomei uma decisão: vamos os dois sair por uns tempos de Lourenço Marques e viajar até à Europa, passando uns meses em Lisboa.

Quando Márcia regressou nessa noite já um pouco bebida, fui meiguinho e falei-lhe dos meus planos. Aceitou, estranhamente sem resistir e mostrou-se bem contente. Fomos para a cama enlaçados e voltei a sentir a Márcia de sempre.

- Olha Luis, o Ronaldo quer-me levar a dar uma volta na Europa para depois passarmos uns meses em Lisboa – disse Márcia ao seu amiguinho do coração.

- Calha-me bem, pois tenho coisas que fazer na Metrópole e assim como não nos conhecem como aqui, estaremos mais à vontade. Vê lá se te despachas na viagem à Europa, pretexta uma enxaqueca ou uma razão forte e volta depressa – disse Luis, com Márcia sentada no seu colo, meia despida, num quarto que tomara de aluguer permanente no Hotel Polana.

Voltámos de Paris para Lisboa após 2 dias insuportáveis de estadia, pois Márcia queixava-se de enjoos e tinha-me dado a entender que poderia ser por estar grávida. Fiquei entre o feliz e o desapontado por ter criado enormes expectativas nesta quase lua-de-mel que eu antevia como reparadora do passado recente em África.

Em Lisboa, vivíamos na casa dos meus avós, um palacete que ganhara o prémio Valmor, na Av. da República.

Márcia saía de manhã e só voltava à noite e não me dizia por onde tinha andado. Cada dia que passava fervilhava na minha mente um desejo de vingança por me ter atraiçoado e, achava, continuar a fazê-lo.

Demos um beijo longo, mas formal, nessa manhã antes de sair.

Depois, ela despediu-se de mim, sorrindo e piscando o olho, o que me pareceu falso mais uma vez.

Observei-a a atravessar a Av.da República e pedi a todos os santos para que um carro desrespeitasse o sinal e a atropelasse.

Mas, infelizmente, nenhum carro desrespeitou o sinal.

À noite quando voltou, estava bêbada e sonolenta e foi-se deitar.

Tinha já tudo programado: um fino lenço de seda para a estrangular, sem que antes a despisse toda e a abusasse até à exaustão.

A pistola a meu lado para me suicidar em seguida e o telefone com o número direccionado para a Polícia com uma mensagem pré-gravada, considerando-me culpado.

Aproximei-me com muito cuidado para não a acordar e de uma só vez, com um gesto seco, passei o lenço pelo pescoço e comecei a apertá-lo. Acordou espantada e olhando-me em pânico quis balbuciar umas palavras, calculo que de socorro ou de súplica. Amarrei-lhe as mãos e as pernas depois de a por quase sem fôlego para respirar e despia-a com gozo.

Apalpei-lhe o pescoço fino e macio de gata, desci para o peito que sempre me encantara, cheio, redondo e firme que tremia, fui avançando para baixo e penetrei-a muito, muito.

Estava com um lenço atado na boca, mas eu sentia o estertor do desespero.

Finalmente apertei o laço até lhe ver os olhos esbugalhados saírem das órbitas e num estremeção ficou hirta e morta.

Carreguei no botão do telefone e a mensagem partiu para a Polícia e quando apontei a pistola às têmporas, realizei com horror que não tinha balas. Procurei desesperado por todas as gavetas e apercebi-me que as tinha deixado em Moçambique.

A Polícia entrou e saí algemado e ainda deitei um último olhar frio e sem emoções para Márcia que jazia entre a cama e o chão já sem vida.

Convenhamos que ninguém gosta de um par de cornos. Eu não gosto, pelo menos!

(continua)

terça-feira, 21 de junho de 2011

Memórias do cárcere (12) Márcia


Foram tempos de grande paixão.

Começámos a viver juntos e alugámos um apartamento esplendoroso no décimo segundo andar com uma vista deslumbrante sobre Lourenço Marques e perto da praia.

Deu brado a nossa ligação e passámos a vida a ser convidados para todo o lado: cocktails em casas sumptuosas, almoços, jantares com iguarias finas e também em restaurantes da moda, fins-de-semana na selva….enfim, uma vida social intensa e muito pouco virada para nós.

Fazíamos amor esporadicamente, ou melhor, eu queria uma vida mais íntima a dois e com maior frequência mas à Márcia raramente lhe apetecia pois vinha esfalfada das festas e um pouco bebida.

Comecei a reparar que quando se despedia de mim ou de alguém piscava um olho. Era um tique que me enervava. Ao princípio achei graça mas depois parecia-me uma pirulice. Delicadamente perguntei-lhe a razão e respondeu-me que desde miúda começara a fazê-lo e que tinha sempre agradado a toda a gente, e com uma gargalhada fresca partiu, sem antes deixar de me dar um beijo repenicado na cara!

Ao fim de uns dois meses extenuantes, tive uma longa conversa com ela e pedi-lhe que abrandasse o ritmo das saídas. Concordou e durante algumas semanas tornou-se meiguinha, fizemos amor loucamente como que a compensar o tempo de folia perdido e eu sentia-me verdadeiramente apaixonado e o homem mais feliz e orgulhoso de Lourenço Marques.

No descapotável e de cabelos ao vento passeávamos a alta velocidade pelas ruas e cafés e não havia descanso para os acenos e olhares com que éramos brindados.

Márcia disse-me uma manhã que tinha arranjado uma ocupação pois sentia-se fútil durante o dia sem nada para fazer. Tratava-se de ser relações públicas do Hotel Polana o que implicava, disse-me com uma voz de gatinha, ter que gastar mais dinheiro em vestidos, cabeleireiros, e até ter um carro para se movimentar.

Achei boa ideia e aceitei que pudesse usar o Maserati enquanto, com tempo, não se comprasse um carro, o que a tornou muito feliz e excitada.

Só começaria a trabalhar na semana seguinte por isso aproveitámos o tempo para estar juntos e ela quis-me compensar de tanta generosidade, entregando-se-me completamente.

Os meus pais detestavam-na: achavam-na uma oportunista que se queria aproveitar do meu dinheiro e estavam sempre a dizer-me que me arrependeria mais tarde. Eu ficava furioso e respondia indignado, defendendo-a.

É claro que a minha conta bancária teve que ser muito mais reforçada, pois as despesas com ela e os seus gastos eram como um saco sem fundo.

Nisso os meus pais nunca me limitaram, continuava a haver muito dinheiro e os bancos eram os primeiros a tentarem-me com cartões de crédito gold com plafonds ilimitados! Caí na asneira de dar um a Márcia e os saldos subiram em espiral.

Quando me queixava, ela sabiamente enroscava-se em mim e nesses dias eu atingia o êxtase com a ternura, fogosidade e sensualidade de Márcia.

Comecei a ouvir de uns amigos que ela já tinha dado cabo de várias fortunas, mas atribuí estes rumores a ciúmes e inveja.

Gastou-me um fortunão em novas roupas que foi comprar a Joanesburgo, mas deu como pretexto que era para que se soubesse como eu a tratava bem e como éramos tão unidos e felizes, sobretudo neste novo emprego aonde teria que contactar com clientes importantes, ricos e exigentes.

(continua)

sábado, 18 de junho de 2011

Só descansarei quando vir sair o sangue quente do teu corpo


Satânico é meu pensamento a teu respeito
e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão,
numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem.

A noite era quente e calma e eu estava em minha cama,
quando,sorrateiramente, te aproximaste.
Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor!

Percebendo minha aparente indiferença,
aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos.
Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci.

Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão.
Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis
do que entre nós ocorreu durante a noite.

Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama te esperar.
Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força.
Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos.

Só descansarei quando vir sair o sangue quente do
teu corpo.

Só assim,livrar-me-ei de ti, mosquito Filho da Puta!

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Memórias do cárcere (11) o paraíso escondido do meu preceptor africano


Toda a costa do Niassa é preciosamente recortada em baías de grande beleza.

O Niassa é a zona dos grandes isolamentos e das grandes solidões, das grandes distâncias e dos grandes horizontes. Nenhuma outra paisagem nos dá, tão profundamente, a ideia da extensão e profundidade africanas — e em nenhuma outra também a África se mostra mais próxima da África do período lendário, que fez do grande Continente o mais bárbaro armazém de mistérios mundiais.

Aproximamo-nos da aldeia de Manuel Candeeiro de Deus, sede do gentio de Macuana, que, de alguma forma deu o nome às gentes que, em maior número, povoam esta face litoral: os macuas.

Mantêm-se as características solenes da paisagem e as várias faces das gentes macuas. Cajueiros, mangueiras em flor e embondeiros, abundam entre as espécies arbóreas. Os indígenas festejam a passagem do autocarro — eles alegres e vivos, rindo por todos os dentes, elas quase tímidas, muitas com as máscaras (de beleza).

Depois, a estrada, ora sobe a pequenas colinas onde o arvoredo se pega, ora desce a baixos enlameados onde o mar, sorrateiramente, se infiltra. Sucedem-se os pântanos e grandes calas vazias e salgadas. As queimadas passaram mas enegrecem mais o ambiente, tendo expulsado o verde da paisagem.

E por fim surge uma grande, imponente, baía, que vamos bordejando e nos faz esquecer as fealdades da terra.

Tudo nesta serra recatada e perdida em lonjuras do Niassa se junta para a tornar encantadora: o isolamento, a deliciosa movimentação do seu relevo, os seus silêncios profundos, uma espécie de virgindade selvagem, difícil, ainda quase inacessível — e, ao mesmo tempo, as suas paisagens frescas, os seus recantos de paraíso.

A subida é naturalmente difícil. Nada se construiu ou preparou para a facilitar. Há passagens em que temos de nos servir dos quatro membros, como os bichos. Mas todos os esforços e fadigas são constantemente suavizados pelo encanto do cenário — os vales atulhados de folhas e sombras, janelas entre ramos sobre horizontes azuis, fios de água cantando no silêncio, solenidade de penumbras, visões graciosas de antílopes, etc.

O calor é intenso, mesmo sob as ramadas que encobrem o sol por completo — mas a frescura das cores e das penumbras entra pelos olhos e suaviza os ardores da fornalha.

Chegamos ao pico às quatro horas da tarde. Marchávamos desde as seis da manhã — isto é, trepávamos, gatinhávamos.

E lá no alto — que maravilha... e que desolação!

Que maravilha a dos horizontes!

Tem-se a impressão de que se vê dali uma parte do planeta como se veria do espaço celeste, a milhares de metros da Terra. Uma grande, infinita, planície que se nos afigura lisa como uma bandeja. E, nessa bandeja os montes dispostos e situados como coisas estranhas, móveis, apenas arrumadas para se deslocarem para outros lugares.

Não há entre eles vales, nem ondas de terreno. Estão ali, puseram-nos ali, como se põem montes de areia ou cascalho numa eira.

Que desolação a presença dos homens! Uma casa sórdida, de pau a pique, quase sem cobertura — e 10 quase-palhotas igualmente sujas. Eram a única nota feia, rebarbativa, naquele cabeço de onde se contemplavam maravilhas.

Quando lhe perguntei como foram os seus pais ali parar, respondeu-me simplesmente:

— Buscaram o paraíso!

Não me atrevi a perguntar-lhe o que sabiam eles, da vida e dos costumes das estrelas.

(continua)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Memórias do cárcere (10) o Maserati Spyder descapotável


Não conseguia dormir. Vinham-me à cabeça dois pensamentos igualmente dolorosos: a minha companheira e a minha morte previsível, um dia!

Conhecia-a uma noite, numa festa do Polana. Estava no relvado à volta da piscina, rodeada de vários rapazes e conversava animadamente.

Nessa altura eu tinha acabado um namoro de 3 anos com uma péssima companhia, uma mulher linda mas perversa e inteligente. Estava cansado da relação e procurava sexo e tranquilidade.

Márcia, era pouco mais baixa do que eu, com uns cabelos longos caídos sobre os ombros e uma figura esguia e elegante. Vim a constatar que tinha olhos de cor de mel, um nariz perfeito, uma boca carnuda e um peito saliente e tentador bem como umas ancas muito bem delineadas.

Não descansei enquanto não ma apresentaram. Alguns dos que estavam no seu grupo do jardim, eram conhecidos “conquistadores” locais, endinheirados, ociosos e sem escrúpulos.

Olhou-me vagamente e quando lhe propus que fôssemos buscar uma bebida, acompanhou-me displicente.

Nessa altura, tinha um Maserati Spyder descapotável, com estofos de pele e de cor encarnada e confesso que fazia um sucesso danado! Loiro, de olhos azuis e com um corpinho bem tratado, tornei-me num Adónis barato, papando quem eu queria!

As minhas relações com os meus pais limitavam-se a conversas esporádicas sobre o reforço da minha conta bancária. Sentia tristeza no meu pai pelo afastamento a que o votava e ele refugiava-se cada vez mais em ausências prolongadas na selva.

A minha mãe, muito só, empreendera na bebida. Claro que os cocktails ajudavam e era raro não voltar a casa já com um valente grão na asa! Uma tristeza e decadência, mas cada vez havia mais dinheiro e de Lisboa vinham transferências chorudas do negócio do meu avô.

A vida transcorria assim gostosa, cheia e sem limites como só em Lourenço Marques dessa época se podia viver com dinheiro!

Tinha remorsos quando ao regressar tarde a casa, entrevia Manuel Candeeiro de Deus, que me olhava com uns olhos tristes e puros que me penetravam como se fossem punhais! Eu sabia que ele sabia que eu andava perdido e na asneira constante, sem rumo!

Fui mostrar o carro a Márcia e propus-lhe uma volta. Estava uma noite soberba, com um luar lindo e uma temperatura amena.

Ela estava com um vestido de seda curto e colado ao corpo deixando ver as formas esplendorosas. Eu tinha posto uma camisa de puro linho branco que brilhava na noite, com os botões abertos deixando entrever um peito peludo e firme e umas calças da mesma cor do carro. Cheirava bem, era de uma marca que punha as mulheres doidas!

Ouvi na igreja local baterem as 4 da manhã e mudei de agulha! Pensei que quando saísse da prisão, teria cuidado com a saúde pois não queria morrer doente e deprimido, dependente de alguém ou confinado a uma cama todo entubado.

A ideia da morte, esticadinho num caixão, pregado e envolto em chumbo sem poder sair nunca mais, fez-me vomitar….sem, aliás, ter muito para deitar fora! Foi um medo grande, um pavor e uma sensação de impotência que senti, ainda para mais enfiado nesta cela maldita, pequena e sem luz natural.

Era uma antevisão do que seria a pré-morte!

Adormeci exausto e abandonado, sem forças para lutar com a minha mente.

(continua)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Memórias do cárcere (9) a aldeia tribal


Partimos, Manuel Candeeiro de Deus e eu, numa madrugada daquelas de África aonde a terra ainda cheira à noite, de autocarro para a tão almejada visita à sua aldeia natal.

Os meus pais discordaram totalmente deste meu empreendimento até ao último minuto. Mandei Manuel dormir fora de casa na véspera para não ser confrontado com esta afronta. Viria ter comigo logo cedinho no dia seguinte. Acho que percebeu a intenção e disse-me mais tarde que ficara muito grato.

O meu pai, antes de se deitar foi ao meu quarto e deu-me alguns bons conselhos de experimentado pisteiro e ao beijar-me, desejou-me boa viagem. Não fez mais comentários. Senti que tinha compreendido no seu íntimo que esta minha amizade por Candeeiro de Deus era fruto do abandono a que me votavam e que tanto eu como o meu preceptor africano sabíamos o lugar de cada um, sem mais consequências.

Já a minha mãe tinha feito uma cena e dito que estava a tomar uma atitude impensável de alguém da nossa classe. O que diria a sociedade, os amigos e até o perigo para um branco de se aventurar no meio de uma aldeia nativa?

- Disparates ofensivos do pobre Manuel! Como se de repente se preocupassem pelo meu bem-estar! Nunca me ligaram bóia tendo sido ele o meu verdadeiro pai e mãe – disse enfadado e sem mais discussões.

No caminho, no autocarro fui fazendo perguntas sobre a vida na sua aldeia.

Disse-me que possuem uma maneira própria de organizar a vida. Entre eles tudo é dividido com o objectivo de fazer com que a aldeia funcione harmoniosamente. A divisão do trabalho, por exemplo, segue basicamente critérios de idade, sexo e acumulação de conhecimentos e de cultura.

Segundo me explicou Manuel Candeeiro de Deus as funções e divisão do trabalho na aldeia passa-se da seguinte maneira:

- Os homens adultos são responsáveis pela caça de animais selvagens. Devem garantir a protecção da aldeia e, se necessário, participarem e arbitrarem nas disputas com outras tribos. São os homens que também devem manejar as ferramentas, instrumentos de caça e pesca e a construção das casas.

- As mulheres adultas cuidam dos filhos, fornecendo-lhes alimentação e os cuidados necessários. Também cuidam da agricultura da aldeia, plantando e colhendo as culturas. As mulheres também devem fabricar objectos de cerâmica (vasos, potes, pratos) e preparar os alimentos para o consumo. Devem ainda apanhar os frutos, fabricar a farinha e tecer as redes de pesca (artesanato).

- As crianças, ou seja, os rapazes e raparigas da aldeia, também têm determinadas funções. As suas brincadeiras são orientadas para a aprendizagem prática das tarefas que deverão assumir quando adultos.

- Há o chefe político e administrativo que é experiente, devendo manter o bom funcionamento e a estrutura da aldeia.

- O curandeiro possui um grande conhecimento sobre a cultura e a religião da tribo. Conhece muito bem o poder das ervas medicinais e actua como uma espécie de “médico” da aldeia. Mantém as tradições e repassa-as oralmente aos mais novos. Os rituais religiosos também são organizados por ele.

Além de trabalharem, também se divertem. Fazem festas, danças e jogos. Porém, estas formas de divertimento possuem significados religiosos e sociais. De entre os jogos, por exemplo, destacam-se as lutas. Estas são realizadas como uma forma de treino para desenvolver a parte física.

(continua)

domingo, 12 de junho de 2011

Memórias do cárcere (8) o túnel


Numa das celas do meu corredor, vim a saber estar o Pe. Frederico, tido como pedófilo e acusado de homicídio.

A sua mãe visitava-o semanalmente e trazia-lhe dinheiro, guloseimas, boa comida e pequenas lembranças.

Um dos gangs,resolveu começar a sová-lo e a roubar-lhe sistematicamente tudo o que ele recebia e um dia, com bastante serenidade, queixou-se no pátio ao David.

Como bom bufo que era, David passou o recado ao gang rival que convocou o Pe. Frederico para um encontro discreto numa das salas da biblioteca da prisão.

- Olhe Sr. Pe. Frederico, não somos cá de pedofilias, e parece que nada foi provado mas acabou acusado da morte de um seu protegido, por ter caído de uma falésia. Nada temos com isso, o que não toleramos é roubos e violência. Fica nosso protegido. Só precisamos que nos diga quem são os reclusos que o assaltam e lhe batem – disse o chefe do gang.

- Muito agradecido pela vossa atitude, mas já aceitei que faz parte da minha pena. Não vou dizer os nomes pois tenho medo de represálias – respondeu o Pe. Frederico, em português do Brasil.

O chefe do gang franziu o sobrolho e disse zangado:

- Nós não aceitamos isso. Vai mesmo ter que nos dizer a identidade deles mas não se preocupe, porque fica fora disto. Se não o fizer, olhe que as chatices sobram para si.

O Pe. Frederico acabou por denunciar os seus agressores e voltou para a cela apavorado.

O acesso ao pátio faz-se por várias portas, mas sobretudo por uma espécie de túnel grande que permite a passagem de muitos presos em conjunto e em tropeção desejosos de ar livre.

Há uma certa escuridão no meio e nesse dia dois homens do gang que protegia o Pe. Frederico, colocaram-se de cada lado do túnel, armados com barras de ferro e quando os agressores passaram ao seu alcance, bateram-lhes com força nos queixos e nos joelhos.

Ouviram-se uns gritos de dor intensos e quando os guardas acorreram, depararam com dois reclusos contorcendo-se no chão numa poça de sangue, com os queixos desfeitos e com os joelhos partidos.

Nunca mais se ouviu falar de roubos ou pancada ao Pe. Frederico.

Tornou-se ainda mais discreto até que se soube que tinha fugido para o Brasil.

David contou-me esta história para enfatizar como era importante que eu aceitasse a protecção do gang do Ratinho.

Nessa noite, sonhei com África, com o planalto dos Macuas, com o meu preceptor Manuel Candeeiro de Deus e perguntei-me se um dia poderia também para lá fugir.

Acordei a meio da noite ensopado em suor. Estava uma temperatura tórrida e eu ali preso.

Olhei para as barras da janela e calculei que se atasse o lençol da cama às grades e me pendurasse com ele em volta do pescoço, com o meu peso, seria eficaz: um garrote perfeito para me enforcar!

(continua)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Memórias do cárcere (7) o chefe do gang


Mal nos abriram as portas das celas, avança para mim sorridente um homem dos seus 54 anos, que me estende a mão e se apresenta:

- Bom dia, sou o Ratinho.

- Eu sou o Ron – disse-lhe retribuindo o gesto.

Gostei da cara dele logo ali. Parecia um “gentleman dos bandidos”, bem entendido. Por alguma razão estaria lá!

- Vê-se que não és da chunga, o que vai sendo raro nesta prisão. Já me dirás o que fizeste, mas tenho urgência em falar contigo, primeiro porque és meu vizinho de cela e poderemos comunicar facilmente e depois porque tive uma baixa no meu grupo – acrescentou o Ratinho, cofiando uma barba surpreendentemente bem aparada e limpa.

Fomos tomar o pequeno-almoço à cantina e sentámo-nos numa mesa mais afastada dos outros reclusos. Vi uma data de olhos observarem-nos à nossa passagem, e percebi que o meu companheiro deveria, pelo menos, ser conhecido, senão respeitado. Já com o David, passei despercebido, o que viria a constatar mais tarde, ser uma grande vantagem.

- Sou o chefe de um gang aqui dentro. No meu grupo tenho condenados por crimes de todo o tipo, mas não aceito gajos da ralé, ou seja, têm que ser inteligentes e fiéis. Pagam com a morte os deslizes que cometerem e normalmente isso acontece mais com os ignorantes e os estúpidos. Tu tens cara de educado e esperto – comentou o Ratinho com uma voz decidida e sem pudor, como se estivesse a falar de tremoços!

- Sim, tenho um curso superior e tenho ética no que faço – disse-lhe sem hesitação.

- Precisas de um padrinho que te proteja e por outro lado terás que fazer algumas tarefas que eu te ordene e que sejam necessárias ao gang. Estás disposto a aceitar estas regras? – perguntou o meu vizinho de cela.

- Preciso primeiro de saber quais são as regras, quem és tu e quem são os outros membros do grupo e o que fizeram para aqui estarem, o tipo de actividades que me serão exigidas cumprir…e o que mais me ocorrer. Dá-me uns dias…aqui não há pressa! – acrescentei sem temor.

- Muito bem, tens até Sábado de manhã para te decidires. Depois de nos verem juntos serás abordado por outros gangs. Se quiseres, logo pela tardinha conversamos de novo no pátio e já te poderei responder a todas as tuas dúvidas e perguntas – e o Ratinho levantou-se e foi-se deixando-me sozinho.

De facto, David aproximou-se e sentou-se ao pé de mim.

- O Ratinho é um dos mais poderosos chefes dos gangs. Estás cheio de sorte em ele te ter contactado. Eu se fosse a ti aproveitava e aceitava o convite que ele seguramente te fez para ser teu padrinho. Ele tem lá fora uma bem sucedida rede de roubos de carros de topo de gama e mesmo estando aqui detido, ganha muito dinheiro. Compra os guardas e tem tudo o que quer – e David olhava para mim com algum respeito ao me dizer isto, creio que, por me ter visto com o meu futuro chefe!

- Posso ser-te muito útil se me quiseres aproveitar. Sou um bufo e sirvo aqui dentro vários gangs ao mesmo tempo, por isso sei sempre o que se passa em todo o lado. Só te exijo que me vás informando do que sabes e que de vez em quando me pagues o que eu te pedir. Será sempre proporcional aos serviços que te prestar. Verás que não te arrependerás – e com esta tirada se foi.

No pátio fui-me aproximando de um grupo de mais jovens que jogavam basquetebol á volta de um poste com uma rede e pus-me a olhá-los, mas no fundo fiquei apreensivo com tudo o que ouvira. Abria-se um novo mundo a que nunca estivera habituado no mundo lá fora.

Tinha que pensar muito seriamente os riscos que corria, mas não me ocorria nenhuma alternativa caso recusasse. De nervos, começaram a tremer-me as pernas e o corpo inteiro e fui escorregando até ao chão e desatei num pranto, soluçando alto.

Olharam vagamente para mim e ignoraram-me mas não conseguia controlar o meu mal-estar e aflição.

Senti um afago no ombro e alguém a pegar-me na mão fazendo festas suaves. De repente revi-me em África, em Lourenço Marques, à saída da minha escola no fim do dia, quando depois de uma luta sem tréguas com uns mais fortes que me maltrataram à séria, Manuel Candeeiro de Deus me apareceu a consolar e a levar-me de volta a casa.

- Vem, vamos para dentro. Acontece a todos nos primeiros tempos, não temas, verás que passa – e ajudando-me a levantar, abraçou-me e amparou-me até ao corredor da minha cela.

- Chamo-me José Maria, mas sou conhecido por Zeca.

(continua)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Memórias do cárcere (6) o meu preceptor africano


Manuel Candeeiro de Deus todas as manhãs me aprontava para a escola.

Era reconfortante ser acordado por uma voz quente e sobretudo por uma fiada de dentes brancos imaculados a sorrirem abertamente para mim.

A minha mãe estava sempre a dormir a essa hora. Ou porque tinha tido um cocktail ou um jantar até tarde na véspera, ou porque gostando de acordar pelo meio-dia, podia dar-se ao luxo de ter criados pretos em número suficiente para lhe tratarem da casa e nomeadamente o fiel Candeeiro de Deus para lhe olhar pelo filho.

Só quando voltava da escola pela tardinha é que encontrava a minha mãe. Às vezes nem isso pois ou era um chá social ou tinha ido às compras com as amigas.

No entanto, antes do meu jantar vinha sempre ao meu quarto dar-me um beijo, inquirir vagamente sobre os meus deveres escolares e tentar afectadamente dar-me algum carinho.

O meu pai, como já antes referi, estava muitas semanas ausentes na selva, mas quando vinha tentava compensar-me com uma presença assídua junto de mim. Abominava a vida social e fútil da minha mãe.

Mais tarde, já mais crescido, vim a constatar que tinham um acordo de vida em comum sem se hostilizarem, cada um pelo seu lado. Muito típico da boa sociedade colonial, especialmente a de Lourenço Marques.

A minha mãe tinha uns flirts com vários homens ricos e ociosos que a acompanhavam nos seus programas, jantares e festas, mas não passava disso. Nunca se ouviu falar de nada concreto nem mais ousado.

No caminho para a escola, o meu fiel preceptor falava-me de tudo. Em mais pequeno contava-me as histórias que todas as crianças gostavam de ouvir mas como estávamos em África, acabavam sempre por meter um leão chamado Shani, que no idioma macua significa « maravilhoso ».

Ora o Shani povoava os meus sonhos pois era valente, justo e bondoso para os animais indefesos que protegia contra os predadores. Claro que Candeeiro de Deus nos seus relatos valorizava o « amigo leão » ensinando-me a respeitar a natureza e os seres vivos da selva.

Um dia perguntei ao meu pai porque matava os animais, nomeadamente leões e elefantes, contando-lhe as histórias que ouvia e ele ficou furioso. Vim a saber que se zangou com o criado e o proibiu de me voltar a falar de tais assuntos.

Candeeiro de Deus, respeitador e obediente, mudou de temas e as histórias passaram a ser sobre a vida dos pretos nas aldeias da sua tribo bem como os seus hábitos e costumes.

Sentia-me tão perto dele, assimilando tão naturalmente toda a cultura e formação que me ia dando, que me pareceu natural pedir ao meu pai para ir passar umas férias na aldeia natal do meu preceptor.

Os meus pais falaram entre si e disseram-me redondamente que não, que era um disparate e que um filho de patrões brancos não acamaradava com criados pretos.

Isto passou-se quando eu já eu tinha os meus 15 anos tendo ficado indignado, revoltado e durante um mês não falei em casa, respondendo aos meus pais por grunhidos. Não se importaram muito, pois as vezes que com eles estive foram tão poucas, que acho que nem tomaram esta minha atitude como retaliação.

Uns anos mais tarde e já maior, decidi ir com Candeeiro de Deus passar um mês das minhas férias de verão à sua aldeia perto de Nampula.

Os Macuas - povo da floresta - são uma tribo de origem banta. Em tempos habitavam na zona dos Grandes Lagos (República Democrática do Congo). Depois deslocaram-se em direcção ao sul da África. Actualmente são o grupo étnico mais numeroso de Moçambique. Eles são um povo caracterizado pela sua inclinação natural para o sorriso, que se traduz muitas vezes em sonoras e prolongadas gargalhadas.

Para a tribo Macua, o sorriso é um sinal de amizade e de que se pode criar uma boa relação. Quando chega alguém que não conhecem, sorriem-lhe na mesma. Deste modo, ele saberá que não tem nada a temer. Os macuas recorrem também ao sorriso para apagar as ofensas. O ofendido, por sua vez, espera que aquele que o ofendeu lhe retribua outro sorriso para demonstrar que não queria ferir-lhe o coração. Basta um sorriso e acontecerá a reconciliação.

Tudo isto me foi dito por Manuel Candeeiro de Deus antes da minha partida.

(continua)

terça-feira, 7 de junho de 2011

Memórias do cárcere (5) companheiros de cela


Falávamos baixinho, numa mesa da cantina que ficava num canto.

Estávamos só os dois.

David perguntou-me se eu tinha algum dinheiro para pagar.

- Pagar a quem? - perguntei-lhe admirado.

- Por enquanto não te digo, mas logo sentirás na pele – disse David muito cauteloso.

Falou-me dos guardas, da droga que circulava e que vinha de fora, dos castigos, dos bufos, dos gangs de diferentes origens e natureza, da vantagem em ter um protector, da partilha dos alimentos e trocas de bens, dos telemóveis escondidos, das revistas e vídeos pornográficos, da homossexualidade, dos planos de fuga, das visitas!

Nem uma só alusão a qualquer coisa de mais positivo.

Perguntei-lhe se não havia amizades feitas nos tempos de prisão, de solidariedades e fraternidades, de alguma paz, da tão falada reinserção social para o embate no regresso ao mundo lá fora no fim do cumprimento da pena…..

Nada sabia, nem tão pouco estava interessado!

Ficámos assim meios sem graça e voltei para o pátio sozinho. Ao deixar-me, comentou que eu iria ter problemas se não aderisse aos esquemas!

Quando recolhi à cela ainda era dia e pus-me em cima de um banco para olhar por de entre as grades da janela e só vi um pouco de céu azul, pois o parapeito era em rampa para cima para não permitir a visão do exterior.

Senti uma angústia terrível. A cabeça quase que rebentava e o pânico invadiu-me de novo. Suores frios, desequilíbrio, náuseas e perca de forças.

Chamei pelo guarda que apareceu no postigo e a quem disse que precisava de ir à enfermaria pois sentia-me mal.

Informou-me que ia falar com o superior e passado pouco tempo voltou, abriu a porta e acompanhou-me até ao gabinete do médico.

No percurso, reparei que havia várias salas de aulas e uma biblioteca com mesas e computadores. Pensei com algum ânimo, que era ali que tentaria passar a maior parte do tempo quando não estivesse enclausurado.

O médico dirigiu-se-me com um ar de rotina e sem transparecer qualquer emoção: dir-se-ia que tinha um enfado inato por estar sempre tão recluso quanto os prisioneiros, não tendo praticado, porém, qualquer acto que o justificasse.

Receitou-me Cipralex e umas pastilhas para dormir e mandou-me de volta.

Ao fechar-se a porta, ouvi na parede que dava para a cela contígua, como que um raspar com um objecto de metal, diria uma colher de ferro.

Julguei que eram alucinações, mas após alguns minutos o barulho continuava e pareciam sinais de morse.

Falei alto e perguntei se me ouvia. Fomos os dois para junto da porta de ferro de cada um e o meu companheiro sussurrou que queria logo de manhã falar comigo na cantina. Disse-lhe que sim e perguntei-lhe o nome.

Respondeu-me que era o Ratinho, nome por que era conhecido.

(continua)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Memórias do cárcere (4) passado


Nasci em Maio de 1972, em Lourenço Marques, hoje Maputo.

Soube pela minha mãe que uns meses depois do meu nascimento, já chilreava alegremente no fresco do entardecer num berço de teca forrado a cassa branca, na varanda ampla da casa dos meus pais, na Rua Ayres D'Ornelas.

O meu pai, Leopoldo de Aguiar era descendente dos primeiros colonos brancos de Moçambique. Orgulhava-se muito de conhecer a sua terra de lés a lés e raramente vinha à metrópole.

Aliás, a única vez em que se demoraria mais tempo foi por ocasião do seu casamento que se realizou em Melgaço, na casa senhorial da família da minha mãe.

Nem passara muito tempo em Lisboa, apenas o suficiente para mandar fazer um fraque – tinha sido a isso forçado pelo sogro, António Rodrigues Pereira, barão de Melgaço – e não lhe ficara grande vontade de deambular por uma cidade que nada lhe dizia e que tão pouco conhecia.

A minha mãe, era loira de olhos verdes, alta e esguia e de cor muito branca e nos primeiros tempos custou a adaptar-se ao sol tórrido de África.

Foram morar para uma casa colonial, com um grande jardim rodeando a ala principal, aonde residiam. Havia um grande anexo de criados na parte detrás.

O jardim era exuberante e tinha uma vegetação luxuriante com árvores seculares e flores, muitas flores com um colorido claro que contrastava com a cor avermelhada da terra.

No interior, a minha mãe tinha mobilado a casa com enorme requinte e comodidade. O meu avô materno, o dito barão, era muito rico pois os pais tenham feito grossa fortuna no Brasil. Tinham passado três gerações e uns quantos casamentos de conveniência com meninas de classes sociais mais altas, por isso fazia-lhes muita confusão aquele casamento desigual com um colono, que ainda por cima era guia de caçadores, nos trilhos africanos.

Conheceram-se, por pura casualidade.

O meu pai, quando estava na cidade ia muitas vezes jantar ao Hotel Polana, ou tomar uma bebida ao bar ou mesmo à piscina, que era frequentada por raparigas locais de famílias conhecidas ou de estrangeiras que vinham de férias da África do Sul.

Maria Alice, era o seu nome, sentia-se controlada pelos pais e propusera fazer uma viagem de barco às províncias ultramarinas. Não viram inconveniente e acharam que num bom paquete como era o “Principe Perfeito”, num camarote de luxo, poderia conhecer a bordo novas pessoas e divertir-se sem os riscos da vida meio dissipada que levava nas noites do Porto.

Havia um jovem industrial portuense, sem cheta mas muito bem parecido, que lhe arrastava a asa e temiam que se apaixonasse e com ele se quisesse casar sendo um pretendente que, tipicamente, só viria ao cheiro do seu dinheiro.

Nessa altura o meu pai tinha uma óptima figura, com a pele tisnada de nasceres e pôr de sóis no meio da savana, de travessias de selvas inóspitas com aventuras e caçadas cheias de desafios.

Sendo de uma família moçambicana conhecida e endinheirada, era muito requisitado pelas solteiras e casadas.

(continua)

Memórias do cárcere (3) a causa


Demos um beijo longo, mas formal.

Depois, ela despediu-se de mim, sorrindo e piscando o olho, o que me pareceu falso.

No princípio, eu adorava quando ela sorria e piscava o olho ao mesmo tempo, mas agora até isso me irritava.

Observei-a a atravessar a Av.da República e pedi a todos os santos para que um carro desrespeitasse o sinal e a atropelasse.

Quando estivesse a agonizar no asfalto, ensanguentada, eu pegar-lhe-ia ao colo, olharia nos seus olhos e dir-lhe-ia que fora a mulher da minha vida, e ela faria um último sorriso, e piscaria o olho, e diria que me amava.

Emocionado eu deixaria escorrer uma lágrima, uma só, que cairia sobre a sua cara e deslizaria até à nuca, e ficaria ali por uns instantes, quase a tocar no chão, quase a cair, como que um símbolo da sua vida a esvair-se, e quando a gota caísse, daria um último suspiro, bem forte, e engasgar-se-ia com o próprio sangue, contorcer-se-ia com as suas costelas partidas, soltaria um gemido de quem sabe que está a morrer, e morreria !

Uma morte poética, nos braços do marido que a amava, no meio da Av. da República, engarrafando o trânsito, com uma multidão a assistir, e talvez até a notícia fosse publicada no jornal do dia seguinte : seria uma morte bonita, e eu choraria durante dias e noites em claro a lembrar-me do nosso amor sem limites, e a minha cara incharia de tanto choro, de tanta tristeza, de tanto desgosto.

Espalharia por todo o lado que a minha vida não fazia mais sentido, que era melhor que Deus me tivesse levado !

Volveriam muitos dias até eu voltar ao trabalho, vários meses para correr de novo junto ao rio Tejo, e outros tantos para beber uns copos com os meus amigos e até a olhar para outra mulher, bonita, elegante, inteligente, que sorriria e piscaria o olho ao mesmo tempo !

Eu desejá-la-ia, seduzi-la-ia, amá-la-ia e poderia acontecer que pudesse até ser correspondido, e finalmente sentiria de novo o que por tantos anos me fora negado.

Mas, infelizmente, nenhum carro desrespeitou o sinal.

(continua)

Memórias do cárcere (2) o pátio


No primeiro dia em que fiquei confinado às quatro paredes da minha estreita cela, foi como se o céu se tivesse abatido sobre a minha cabeça.

Tive um momento de pânico e comecei a gritar sem parar, alto e desesperado. Ninguém parecia estar preocupado, pois nada aconteceu. Fiquei rouco de tanto berrar!

A pouco e pouco fui-me calando, cansado, perdido. Estranho, pensei. Pareceu-me que o pânico se fora: sentia que o dominara.

Fiquei em silêncio um bom par de horas, absorto e olhando para o vazio. Só a luz frágil de um pequeno candeeiro da mesa-de-cabeceira me sossegava do peso da escuridão.

Adormeci tarde, exausto.

Abriram a porta com estardalhaço e saí finalmente. Fui arrastando-me para o pátio e encostei-me a um canto.

Estávamos em Junho e já fazia calor e a roupa era composta por uma camisola branca de alças e por umas calças cinzentas de tecido leve. Calçava umas sapatilhas.

Devagarinho fui levantando a cabeça e olhei em volta. Era um pátio grande, com várias portas de acesso vindas das diferentes alas. Seríamos uns 400 reclusos.

A maioria dos presos era composta por jovens entre os 20 e os 30 anos. De várias nacionalidades e raças, predominando os portugueses.

Ninguém parecia estar interessado em mim. No entanto os meus 1,93m, os meus olhos azuis e cabelo loiro, o corpo atlético e bem constituído, nunca me deixaram passar despercebido.

Melhor, pensei. Com tempo averiguarei quem são os meus companheiros de infortúnio.

O pequeno-almoço tomado antes do recreio numa cantina anódina, compunha-se de café com leite e dois papos-secos com manteiga ou marmelada. Também havia chá.

Reparei, para meu grande gáudio, que se podia fazer algum desporto no período ao ar livre, pois as redes de basquetebol e de voleibol eram profusas e estavam espalhadas por todo o lado.

- Sou o David. Estou cá, já vai para uns dois anos. Calculo que sejas novato, pois nunca te vi aqui no pátio. Queres uma passa? – e estendeu-me um charro, molhado com o cuspo dele.

- Não fumo, obrigado. Chamam-me Ron e cheguei ontem – disse com uma voz indiferente.

- Precisas de saber umas coisas desde o primeiro dia. Estou disposto a pôr-te ao corrente do que deves e do que não deves fazer. Há códigos cá dentro, gangs, grupos étnicos, bons e maus costumes, e um gajo ou sobrevive ou morre – acrescentou David, com um ar sério.

O sinal para a refeição do almoço tocou e dirigimo-nos os dois para a cantina.

(continua)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Memórias do cárcere (1)



Chamo-me Ronaldo e sou o recluso nº 123456 do Estabelecimento Prisional de Vale de Mortos. Tratam-me por Ron.

Entrei há 6 meses e esperam-me ainda mais 8 anos de cadeia, cumprindo uma pena por homicídio da minha companheira.

A minha cela é pequena e mede 1,5m por 3m. Tem um catre com um colchão pouco espesso, por isso sinto os ossos contra o tabopan, e o travesseiro é de espuma, o que me faz dores no pescoço. Hei-de me habituar.

A porta da cela abre às 6h30m da manhã e fecha às 18h30m da tarde. Um horror estar tanto tempo fechado a sete trincos. Percebo agora como as monjas de clausura do século XVII ainda em espaços mais exíguos, morriam rapidamente como santas ou loucas.

Nas paredes deixam por o que quisermos. O anterior inquilino era tarado sexual e quando saiu deixou como herança posters gigantes de gajas de grandes mamas e outras de vaginas abertas. Arranquei-os com nojo e deitei-os fora, mas ficaram lá as marcas na parede, por isso vai levar tempo a esquecer-me quando para lá olhar. Não que não goste de mulherio, mas causava vómitos de inestéticas e porcas que eram as vistas.

Pus, por enquanto, uma fotografia do meu pai: está de botas, fato de caqui e com um chapéu mole na cabeça, sentado em cima de um elefante que acabara de matar. É caçador profissional em África. O olhar dele é a razão de ter escolhido este registo para comigo partilhar a solidão: de triunfo pela proeza conseguida e de infinita liberdade como só África dá a quem dela se enamora e lá vive.

Tenho ainda a intenção de colar na parede: um poster colorido com um olho gigante a observar-me, como se fosse a divindade a tomar permanentemente conta de mim e uma fotografia em sépia em que se vêem três pessoas – a minha avó materna em muito nova, o pai dela com bigodes e um chapéu colonial do princípio dos anos 30 e entre os dois, sentado no chão, um pretinho de feições correctas, de olhar brilhante e com um sorriso aconchegador de orelha a orelha.

Chama-se Manuel Candeeiro de Deus e foi com quem passei toda a minha meninice. Cresceu entretanto e já mais velho, foi como que um pai para mim.

O meu progenitor verdadeiro pouco o via pois passava o tempo pela selva adentro. Mas quando voltava, punha-me horas a ouvi-lo contar as suas aventuras, umas reais outras fantasiosas, creio que para me encantar.

Voltarei a falar muito dos dois.

(continua)